sábado, 4 de dezembro de 2010

“Pai, volta pra casa”

A verdadeira história do Homem do Saco

“Eu estava tomando cerveja na padaria, quando olhei pra fora e vi um homem de terno segurando o braço dele”, conta Cláudio de Andrade. Um mendigo velho, com o corpo coberto por um monte de sacolas plásticas sujas, era segurado por um homem engravatado. “Pai, volta pra nossa família”, dizia o jovem. Segundo os taxistas que trabalham lá perto, esse rapaz era um advogado.
Cláudio morou no Capão Redondo por muitos anos. E assim como todos os que andam pela região do metrô, conheceram o misterioso – porém carismático – Homem do Saco, como era chamado.“Pois é, ninguém sabe direito por que ele vivia nas ruas. Alguns dizem que ele largou tudo depois de uma desilusão amorosa. Dizem até que era um engenheiro. Mas isso são só alguns boatos”, afirma Cláudio.
“Uma coisa ele tinha de bom: não mexia com ninguém nem recebia nada”, conta a Irmã Tereza Bastelli, uma das raras que conheceu um pouco desse senhor. “Ele nunca pedia nada, no máximo aceitava comida de algumas pessoas específicas. Uma vez eu ofereci uma camiseta nova e ele recusou. Disse que não precisava, que aquela toda rasgada que ele usava por baixo das sacolas ainda estava boa”, detalha a freira.
Uma das pessoas com quem ele conversava era Arianne, uma garotinha para quem ele revelara até o nome. “Eu ia à padaria e os dois ficavam lá conversando. Ela gostava muito do Raul, e ele, por sua vez, era muito simpático com ela”, conta Geni Oliveira, mãe de Arianne. “Uma vez, não sei como, ele tinha cinco reais e queria comprar alguma coisa nessa padaria. Mas é claro, não deixaram entrar. Estava muito sujo e fedido. Isso deixou a Anne louca da vida”, explica a mãe.
“Ele tinha dinheiro, por que não deixavam entrar?”, conta revoltada até hoje a menininha de 10 anos. Ela perguntou ao andarilho o que ele queria comer e comprou um lanche para ele com aqueles cinco reais. “A Arianne insistia tanto, que às vezes a gente deixava uma sopa para ele na portaria do condomínio”, diz Geni.
“Se você perguntasse quando ele foi parar na rua, ele não respondia. A mesma coisa se você perguntasse da família. Posso te dizer que ele está aqui pelo menos desde 1982, que foi quando cheguei ao Capão”, relata Ceará, dono de um bar. “Eu era uma das pessoas que mais conversava com ele e, por isso, também era um dos poucos de quem ele aceitava comida. O velho sempre vinha almoçar aqui. Mas toda vez que eu perguntava da família ele ficava quieto.”
Ceará foi uma das pessoas presentes nos momentos finais do Homem do Saco. “Acho que foi em 2005. A Irmã Tereza me disse que ele estava machucado.”
“Eu estava rezando quando uma colega me disse que o Raul estava debaixo de um saco há três dias. Para mim, o próximo é quem está lá. Larguei o que estava fazendo e fui vê-lo”, relata a Irmã Bastelli. “Cheguei lá e ele estava embaixo de uns sacos, só com a perna de fora, tomando chuva.” Tereza estava com Ceará e sua esposa.
“Foi um carro que passou em cima da minha perna, tá doendo muito”, disse o mendigo. Eles logo ligaram para a emergência, pedindo que viessem resgatar um morador de rua. Mas a ambulância demorou muito para chegar. “Passava uns 20 minutos, a gente ligava outra vez e nada”, relata a religiosa. Ela ligou para a polícia e disse: “Por favor, tem uma pessoa aqui doente, já estou desde manhã com ele esperando”.
Os policiais disseram para ela ir embora, que também já tinham recebido o pedido e que dali a pouco iriam lá buscá-lo. “Olha, não vou sair daqui. Estou com um homem que está tomando chuva e com o pé inflamado. Ele precisa ir para o hospital”, respondia a freira. Ainda sim, pediram para que ela voltasse para casa. “Não vou pra casa enquanto não chegar uma ambulância pra levá-lo ao hospital. Se vocês chegarem aqui não vão sequer perceber que é uma pessoa, vão pensar que é um amontoado de lixo. Estou com 20 de pressão, tenho 84 anos, mas não vou deixá-lo aqui sozinho” resistiu a senhora.
Ceará ameaçou ligar para um jornal e, aí sim, uma ambulância chegou. Tiraram os sacos de seu corpo e o puseram numa maca. Nesse momento, Raul chamou a Irmã Tereza Bastelli com um gesto. O que estava prestes a fazer é um dos maiores mistérios que envolvem o Homem do Saco. Tirou de uma das sacolas restantes um envelope. E lá havia 140 reais. “Seu Raul, vou guardar para o senhor”, disse a freira.
“Meu filho, custou para encontrá-lo quando fui lhe fazer uma visita no Hospital Campo Limpo. Não o reconheci; deram banho e cortaram a barba. Foi só aí que descobri que ele era branco”, relata a Irmã. “E foi lá mesmo ele morreu depois de uns dez dias. Ele estava todo infeccionado”.
“Com aquele dinheiro, comprei alimento e doei”, conta ela a respeito do destino da herança de um mendigo.
“Mais ou menos um ano depois, apareceu um casal no convento perguntando sobre ele”, continuou a freira. A mulher era irmã de Raul e explicou que ele não gostava de morar na casa deles. “Só que agora nós compramos um sítio, fizemos um quartinho para ele e viemos procurá-lo”, indagou a mulher esperançosa, mostrando o documento de identidade do irmão.
Tereza Bastelli teve de dar a notícia. “Ele morreu, mas morreu sossegado e muito bem cuidado”. O casal nunca mais voltou. “Gostaria de saber onde ele foi enterrado, para poder confortar a família”, lamenta a Irmã Bastelli.
“Sabe, quando as pessoas vêm um mendigo, geralmente ficam com medo. Mas com ele era diferente. Todo mundo aqui tinha um certo carinho por ele”, recorda Ceará.
Ao contrário dos moradores de rua comuns, Raul não foi invisível. As pessoas não só notaram, como também sentem sua falta. “Ele era muito bom. Não sei se eu sou tão boazinha como ele”, declara Tereza Bastelli. “Às vezes me dizem: ‘dá saudade do Seu Raul’. Aí eu digo: dá mesmo.”

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Alguma coisa tem mudado da ponte pra cá

A história das mudanças e desenvolvimento de um bairro ao mesmo tempo muito e pouco conhecido

“Quando meu pai se mudou para cá, o Capão Redondo ainda nem tinha esse nome”, conta a senhora Vilma De Lucca Urizzi, de 73 anos, moradora do bairro desde que nasceu. Justamente por ser um bairro famoso internacionalmente por sua pobreza e violência, poucos sabem que seus primeiros habitantes “eram de famílias abastadas. Foram alemães que viviam em Santo Amaro que acharam a região muito bonita e decidiram comprar um terreno enorme”, revela Dona Vilma sobre a venda de 70 alqueires (mais de 1,6km) para adventistas que fundariam lá uma grande instituição de ensino em 1915.
O CAB (Colégio Adventista Brasileiro), mais tarde conhecido como IAE (Instituto Adventista de Ensino) e hoje tido como Unasp (Universidade Adventista de São Paulo) foi um ponto de partida para o crescimento do Capão Redondo. “Proprietários começaram a comprar terras em volta do colégio, onde matriculavam seus filhos”, explica Vilma.
A luz elétrica chegou à região entre 1956 e 57, um pouco antes de asfalto que veio em 58, quando Luiz Antônio de Luca ainda era uma criança de quatro anos. “Lembro que tinha só um ônibus que passava aqui. Era o ‘Jardineira do Guerra’, que ia para Santo Amaro, de onde saiam bondes ou outros ônibus para o centro”, descreve Luiz. “Isso aqui era como o campo. Na época dizíamos inclusive que estávamos indo para a ‘cidade’, não para o ‘centro’, como dizemos hoje.”
E o Capão Redondo tinha razões de sobra para ser considerado como campo. “Aqui onde hoje é o pátio de manobras do metrô era um campo enorme de plantação, com um córrego atrás. Hoje em dia o que resta é o córrego poluído”, detalha Luiz de Luca.
“Já haviam alguns barracos isolados por aqui quando eu era pequeno, mas as grandes ocupações irregulares começaram mesmo lá por meados dos anos 60”, fala o morador a respeito do que então levaria o bairro a uma fama internacional de pobreza.
As décadas seguintes trouxeram índices de homicídios comparáveis aos da Guerra do Vietnã. Mas essa história e pobreza e mortes todos já conhecem, ou pensam que conhecem.
Mas o fato é que de uns anos para cá, a vida de quem mora nesse bairro tem mudado consideravelmente, e não só pela redução nas estatísticas de violência. “Eu me lembro de quando começou a surgir um monte de lojas de móveis e eletrodomésticos lá perto de casa. Fiquei até com medo de que aquilo ali virasse um Largo 13”, conta Fabíola Fabbris, 20, sempre moradora do Capão.
Priscila Miagui, que mora e trabalha no bairro, lembra ainda detalhes interessantes dessas lojas. “Elas foram construídas com uma pilastra na fachada, pra impedir que algum caminhão arrombasse o portão e roubassem a mercadoria.”
“Depois da construção do metrô, a região ficou mais valorizada. Começou a surgir de um dia para o outro um grande comércio em volta da estação Capão Redondo. Agora nós temos até um shopping”, diz Fabíola sobre o Shopping Campo Limpo, inaugurado em 2005.
E esse crescimento trouxe muito mais empregos para o Capão Redondo, o que serve de exemplo de logística para a cidade de São Paulo. “Milhares de moradores, que antes tinham de se locomover até a ‘cidade’ para trabalhar, agora gastam só alguns minutos para chegar ao serviço”, afirma Mariana Luz que trabalha no Capão e mora no Campo Limpo, bairro vizinho.
Mas para ela, embora tenha melhorado bastante, ainda há muito para se aperfeiçoar. “Aqui não tem baladas nem restaurantes”, queixa-se a estudante. “Apesar de termos o Hospital Campo Limpo, que aliás está bem melhor, ainda precisamos de mais médicos e clínicas por aqui”, acrescenta. Mesmo assim, ela toparia viver por lá para o resto da vida. “Se as condições de vida continuarem melhorando, não tenho por que me mudar. Quem vive no centro também tem suas desvantagens, como o caos e o barulho, por exemplo”, esclarece Mariana.
“Esse lugar tem mudado muito”, comenta Dona Vilma. De 1937 pra cá, ela é uma das poucas que sabe tanto sobre o que se passou no Capão Redondo. Imagina também o que ainda virá de bom sem se esquecer do que jamais voltará. “Isso tudo era maravilhoso, lindo. Eu cresci brincando no córrego limpo, pulando nos cipós que tinham na mata daqui. Tinha até animais silvestres, como veados. Nós dormíamos de porta aberta...”