Nunca desista de seus sonhos. É esse manjado jargão título de livro de auto-ajuda que define uma das mais impressionantes almas que conheci.
Como qualquer boa história, não surgiu numa circunstância de alto nível ou num encontro de intelectuais, se bem que até poderia ter ocorrido nessa última suposição.
Conheci José Antônio no ônibus, voltando pra casa cansados como em todos os dias. Estava com meu amigo Josiel e sentamos de frente pra ele, conversando sobre trabalho infantil e violência. Como o destino parecia ter reservado, José entrou no assunto, e logo viajamos pelas mais diversas atualidades.
Como se já não fosse suficiente voltar pra casa com uma boa conversa que faça passar o tempo, conheci coisas fantásticas sobre aquele homem.
De início já havia notado suas feições interessantes. Um sorriso humilde, com o canino esquerdo faltando e um olhar que parecia cansado e com um brilho que contrastava estranhamente com as expressões de alegria que surgiam durante a viagem.
Ele nos contou que trabalhava com jardinagem, e que de vez em quando procurava outras formas de se arranjar dinheiro. O ritmo subordinado paulistano não agradava nem um pouco a mente desenvolvida daquele pernambucano.
Dentre uma de suas maneiras alternativas de fazer dinheiro está a arte. Tirou de sua bolsa umas folhas de papel canson com desenhos fantásticos. Nunca vi traços tão bem feitos como os dele. Desenhados à carvão estavam os rostos de Glória Menezes e Tarciso Meira. Adoro arte, e desde pequeno me fascino por desenhos em preto e branco. Sempre quis saber desenhar rostos, mas o máximo que posso é desenhar animais e fazer pouquíssimas caricaturas. De todos os retratos feitos à mão, nunca vi algo tão perfeito. Nunca vi tantas expressões perfeitamente trabalhadas! Não há dúvida de que aqueles simples traços à carvão revelam mais detalhes do que uma moderna câmera digital.
Fascinado com o que via, despedi-me de Josiel, que devia descer no próximo ponto. Agora conversava sozinho com José Antônio. Não exatamente sozinho, pois o ônibus todo já estava emitindo diversos “ohhhhs” de admiração pelos retratos vistos. Enquanto conversava com ele, sentia que o assunto era acompanhado por muitos passageiros, que esqueciam a TVO para assistir minha entrevista com aquele artista.
Sabia que um homem que desenhava daquela forma também possuía mais qualidades. Logo perguntei se sua sensibilidade era somente para arte ou para mais alguma outra coisa. E como já esperava, a resposta foi sim.
Quando era criança, ainda em Pernambuco, José viu a chegada do homem à lua pela televisão. E por incrível que pareça, aquele jovem não ficou excitado em ver Neil Armstrong pisando em outro corpo celeste, mas sim com as conversas em inglês dos astronautas e sua base na Terra. Assim ficou fascinado pela língua estrangeira, definindo como uma meta para sua vida alcançar a fluência em outros idiomas.
O mais fantástico (e o que faz jus à primeira frase desse texto), é que mesmo sem cursos, José hoje fala inglês. Após vinte anos olhando em dicionários, lendo livros e observando outros conversarem, atingiu sua fluência no idioma. E não satisfeito (como todo grande homem é) ainda aperfeiçoa hoje o espanhol, francês e alemão. E contou-me que também quer aprender o hebraico.
Ora, tanta vitalidade não é comum nem em jovens, quanto mais para um homem de quase cinqüenta anos. Já cansei de ver pessoas conformadas, fracas, abandonando seus sonhos. E pessoas com mais de quarenta anos raramente ainda mantém sonhos grandes. Mas uma pessoa excepcional nunca envelhece. Enquanto você ainda está disposto a aprender mais, e sempre estar apto a mudar de opinião, você ainda é jovem.
Todo aquele que é realmente jovem vive como um romântico sonhador. Só os velhos se tornam conformados e vice-versa, não sendo raro encontrar velhos de vinte anos.
Mais impressionante ainda, José Antônio sonha muito mais alto. Quer dar aula na Universidade de Cambridge. E apesar de ser considerado lunático por muitos, sei que não se acha velho pra isso. Mesmo não possuindo nenhum curso superior, apenas o 2º grau.
Num outro dia, encontrei novamente com ele no ônibus. Em alguns meses, encontrei-o quatro vezes em minhas voltas pra casa. Na última não passamos muito tempo juntos, de modo que nossa conversa foi pouca. Mas as três primeiras vezes foram se tornando gradativamente mais absurdamente interessantes.
A terceira vez foi definitivamente a mais interessante. Tinha mostrado pra ele um texto meu sobre a relação de homens e mulheres. Das dezenas de trechos que ele poderia ter escolhido pra ler, escolheu justo e meramente a que dizia que alguém pode apaixonar-se diversas vezes na vida, e sempre pela mesma pessoa. José me disse que aquilo era bem verdade, e que já o havia vivido. Instintivamente perguntei se ele era casado, mas respondeu-me que ela morrera. Isso foi uma facada em mim. Logo entendi o porquê de seu olhar parecer sempre meio cansado e contrastar tanto com seu sorriso. Havia nele a dor de quem já perdeu o que teve de melhor, e que vivia com algum amargor. José viveu com sua amada nos anos em que esteve na Inglaterra, trabalhando também como jardineiro, e sobretudo, tornando-se fluente no inglês.
Fiquei absolutamente louco para saber mais dessa outra história. Mas não conseguia voltar ao assunto, até porque Josiel já o desviara. Depois que meu amigo desceu do ônibus, tentei retomar minha curiosidade.
Comecei a falar sobre o romantismo de cidades inglesas e perguntei se ele já tinha o curtido.
Lógico que sim, e justamente com aquela moça. Imerso em curiosidade, pedi desculpas e perguntei qual a causa da morte dela.
Respondeu-me em inglês:
- Remédios.
- De quê?
- Dor de cabeça e antidepressivos. Eu dizia que aquilo faria muito mal a ela...
Com os olhos voltados para cima, José me contou como foi que a perdeu.
- Ela era linda, muito linda...
E me disse que num certo dia ela pediu para que ele dormisse na casa dela, pois não estava sentindo-se muito bem. José lá dormiu, mas teve a pior surpresa de sua vida ao acordar. Encontrou-a fria na cama.
- E ver o amor da sua vida morto não é fácil, você não consegue acreditar – disse-me com os olhos notadamente marejados.
Gostaria muito de saber o nome dela, mas isso não importava, eu não conseguia mais continuar naquele assunto. Era tudo muito forte, sentia um nó doloroso em minha garganta. Certamente ele ainda a ama. Mesmo mais de vinte anos após perdê-la, ainda possui o mesmo sentimento intenso por ela. Enquanto escrevo volto a querer chorar por ele, por essa injustiça ocorrida.
Tal fato só me fez aumentar a admiração por ele. Imaginei assim por que ele havia voltado ao Brasil, mesmo tendo ele afirmado que foi por alguns amigos que haviam dito que o Brasil era então um lugar melhor pra se viver.
Não sei se o caro leitor me compreende quando me refiro ao espírito de juventude que faz parte de algumas pessoas desse mundo. Mas José Antônio provou ser a pessoa que conheço cuja alma abriga com mais intensidade esse espírito. Um homem apaixonado e com sonhos, e já com cinqüenta anos.
A maior prova de juventude e força que já conheci. Realmente a minha inspiração, meu Herói anônimo, uma das luzes que ilumina esse mundo chato, burro e sem esperança.